Fogo e Paixão
Não, não foi coincidência esta opção pelo tema "Fogo" no dealbar da época estival.
Sem embargo de, na dualidade interpretativa desse vocábulo, eu tender a não me alongar sobre o lume dos incêndios, antes privilegiando outro lume, o da Paixão.
Até porque tudo foi dito sobre essa incomensurável tragédia que, em 2017, se abateu sobre o País: vidas humanas ceifadas, destruição sem precedentes, a transfiguração em que cinzas no retrato de um interior quase esquecido...
Já não nos falta, pois, a memória de abnegado empenho do Presidente da República, dos compromissos do Governo, da compreensão, enfim, de que é na prevenção e fiscalização, na mobilização colectiva, que reside o esteio da contenção de ignições, prevenindo o desvario das chamas e o imponderável do seu controle!
Tal como nem nos falta, sequer, o colectivo emergir de uma nova consciência cívica, qual despertar do pesadelo de um povo apostado em não deixar reacender o lume de feridas abertas, tardias no cicatrizar...
Pelo que, nesta acepção de Fogo, já não é tempo de libelos infindáveis.
É tempo, sim, de alimentar a esperança - e a convicção - de que, dos escombros dessa tragédia, nasça o desígnio da perene consciencialização!
Mas, no domínio das ignições, existe um outro Fogo, esse sem labaredas visíveis, tal como o cita Camões: "o amor é um fogo que arde sem se ver..."
Esse, o Fogo da Paixão; invisível na chama, incandescente no coração.
Nasce de um sentimento tão orgânico, tão paradoxalmente etéreo e corporal, que é difícil explicá-lo. Daí, o sábio adágio de que "o coração tem razões que a própria razão desconhece"...
Talvez porque, na Paixão, o sentimento se sobreleve à razão.
E, nessa subjugação, só o esforço da vontade consegue que a razão segure as rédeas do infrene cavalgar de uma Paixão...
Até porque, na Paixão, nessa fusão de corpo e alma, na chama do sentimento, na exaltação dos sentidos, reside um altar de incensos alheio a imitações.
Não se confunde, pois, com o fogo-fátuo de um impulso, qual lume que se presume em Paixão...
Pois que nesses fúteis ensejos de tentação há tanto de pressa em chegar como anseio no partir; como se, nessa sua vacuidade, tal impulso esvoaçasse em vento que sempre acalenta fogos grandes, mas sempre apaga os pequenos...
Não que, em regra, a Paixão seja vitalícia: essa acendalha que incandesce o coração tende a esbater-se em centelha que nos ilumina a vida na mutação para a serenidade do Amor.
Salvo, talvez, nas Paixões não consumadas.
Nessas, eis que persiste a frustração do sonho irrealizado, a autopunição da aspiração imolada, a heresia em urdir simulacros de uma religião que, afinal, teve um Deus falível!
Tal como na "Divina Comédia" e na paixão, não consumada, de Dante Alighieri e Beatrice.
Tal como na platónica paixão entre Pessoa e Ophelia.
Ou na paixão suicida de Romeu e Julieta.
E depois há as paixões consumadas!
Dessas, talvez fruto da consumação, nasceram os mais belos poemas românticos que conheço. Mas, vibrantes sem inspiração, eis que tendem a mitigar a Paixão como causa, sobrelevando o Amor como efeito.
Como se o Fogo, no consumar de uma Paixão, afinal se consumisse, convertido nesse outro lume de um Amor não menos exigente...
Tal como nos inolvidáveis sonetos de Florbela Espanca: neles, o Amor assume um cariz quase egocêntrico na exigência - e frustração - de uma vivência sofrida: solidão, tristeza, saudade, anseio, sedução, desejo e suicídio.
Ou em Camões, nessa sua incomparável poesia lírica, alcandorada em hinos de apologia ao Amor.
Ele que, em imortais versos, bem conhecia um outro Fogo, o do Desejo:
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.
Esse, o Camões do Desejo, da exaltação ao Amor. Nem sempre, talvez, tão ardente no Fogo da verdadeira Paixão...
Pois que, nele, a Paixão já fora prodigamente fértil em dádivas de consumação!...
Essa, aliás, uma das vulnerabilidades da habitação: o excesso no repetir do gesto tende a desvirtuar o seu significado...
E a Paixão, ao converter-se em Amor, nem sempre se reconhece no Fogo do Desejo...
Embora, na bonança do Amor, sobreviva um Desejo algo exigente, qual lume carente de se alimentar; se descurado, é braseiro esmaecido em risco de se apagar...
Até porque a Paixão só aprendeu a ficar por pouco tempo e o Amor foi ensinado a permanecer a vida inteira.
E até porque - perene ou não - o Amor sempre será esse exaltante halo que, por distintas que sejam as suas aflorações, reluz, fulgente, em anseios de alma, em inexorável vocação a uma comunhão de entrega, a uma partilha de dádivas, qual emanação inerente à natureza humana e fundamento do Ser.
Como se Amar e Ser fossem incindíveis atributos da Humanidade!
Que se releve, pois, a liberdade editorial deste modesto prosador na abordagem ao tema do Fogo.
Não por descaso no meu pesar face à tragédia do Fogo, mas por ser tema algo exaurido na profusão de noticiários e relatórios que já nem sequer redimem, antes avivam memórias pungentes.
Nessa acepção, o Fogo traz consigo, em inexorável arrasto, a tenebrosa imagem da imolação da Vida.
Optei, assim, pela homenagem ao privilégio da Vida e do escolher, nesse existir, o nosso próprio destino.
Que tal destino possa nascer no Fogo da Paixão e alicerçar-se na vivência do Amor.
Pois se a Paixão é qual a posse do Mundo, o Amor é qual a posse da Vida!
Nada menos que um desígnio!
Nada mais que uma opção!
Editorial de Mário Assis Ferreira
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