Chamaram-lhe "caixa mágica", mas Televisão foi o seu nome de baptismo.
Nasceu de filiação incerta: ainda hoje se discute o mérito da sua paternidade.
Philo Farnsworyh registou a primeira patente, logo perdida em 1930 para Vladimir Zworykin, em parceria com a RCA.
Certo é que em 1946 surgiria o primeiro televisor RCA produzido em série.
E, nas suas reduzidas dimensões, aquela caixinha parecia conter o tamanho do mundo. Eis que, por artes de magia, o áudio da rádio, o visual da imprensa, o audiovisual do cinema se superaram e sublimaram em genial arquétipo ao alcance de um botão...
A sua estética era o naturalismo; a sua linguagem, a fragmentação temática; o seu timing, a instantaneidade da informação; a sua veste, o espectáculo da representação.
Virtudes reais, pecados virtuais...
Pois que maior virtude seria imaginável do que essa, a de a Televisão ser o veículo de cultura verdadeiramente democrático, uma cultura disponível para todos e maioritariamente governada pelo que as pessoas queriam?
E que pecado poderia ser mais danoso do que esse, o de a Televisão ser governada pelo gosto do que as pessoas realmente querem?
Talvez por isso, pela sua matriz democrática, por reflectir e ser comandada pelos gostos da maioria, eis que a Televisão, mais que um quarto Poder, passou a ser um Estado dentro do Estado.
Ambos endividados.
Ambos vulneráveis nos ditames das leis do mercado: o Estado-Institucional, porque se habituou a gastar mais do que o que os privados conseguem produzir; o Estado-Televisão, porque com o advento dos canais por cabo/internet, passou a produzir mais do que o que os telespectadores conseguem consumir.
E se, para o Estado, a solução óbvia tem sido a de "arrepiar caminho" contendo gastos e produzindo mais, já para a Televisão só restou a opção de "remendar caminho", subjugando-se aos gostos da maioria, em ferrenha disputa por shares de audiência.
Cumpra-se, pois, o gosto do telespectador dominante: inventem-se reality shows, multipliquem-se as novelas, privilegie-se a economicidade de intermináveis reportagens em directo, antecipem-se notícias em segredo de justiça e julgamentos sumários em praça pública, repita-se ad nauseam cenas canalhas onde o sangue espirra e o sensacionalismo impera, prolonguem-se telejornais que repitam à exaustão o que já foi transmitido, inventem-se mais debates entre comentadores de futebol, propague-se a visão das máculas do terrorismo, pois o Daesh até agradece...
É mais barato, combate-se a concorrência das redes sociais, ganha-se nas chamadas de valor acrescentado e angaria-se mais publicidade, pois as tabelas variam em função das audiências e os anunciantes não andam distraídos...
Será isso a Televisão? Será isto a hipnose colectiva que nos amarra a um ecrã em vã ilusão da realidade, a dormência que nos anula a ruptura entre a percepção da transmissão directa, a construção ficcional e a interpretação do telespectador? Será isto, enfim, a Matrix que nos imprime no espírito modelos padronizados de pensar e agir?
Se fosse isto - e apenas isto - dir-se-ia que as pessoas ligam a Televisão para desligar o cérebro. Com o inexorável veredicto de que a Televisão desvirtuou o seu desígnio: não nasceu para esvaziar as pessoas, mas pode ser, afinal, uma emanação do seu vazio!
Mas, felizmente, a Televisão não é apenas isto: a sua raiz democrática também contempla os direitos de uma oposição pensante, embora minoritária, mas que luta contra a vacuidade de ideias, a esterilização da mente, o sensacionalismo.
E nela surgem hiatos em que a aridez dominante se interrompe em oásis de pensamento.
Raramente, nos canais generalistas; frequentemente, nos canais por cabo/internet.
Pelo que conheço de tantos profissionais de Televisão que respeito, de quem sou amigo e sinceramente admiro, consigo pressentir o seu alívio intelectual de fruírem essa fugaz liberdade na evasão ao espartilho dos shares, propiciando-nos programas imperdíveis.
São múltiplos esses conteúdos: excelentes debates e comentadores políticos - a sério ou em modo de humor -, elucidativas entrevistas de teor económico-financeiro, rubricas de cariz cultural, notáveis conteúdos de actualidade sociopolítica, importados de canais com a qualidade da CNN, a CBS, a BBC...
São colírio para os neurónios, sementes para o conhecimento.
E, graças ao zapping, a Televisão acabou por ser a minha cúmplice noctívaga, com quem, madrugada adentro, partilho sentimentos e emoções.
Ele ocupa-me, é certo, algum tempo que gostaria de dedicar à leitura. Mas não o usurpa, antes o complementa na temporalidade da sua informação, no que me estimula à intemporal reflexão dos autores que leio e admiro.
Como se todo fosse mais que a soma das partes...
Como se o pensamento lograsse o privilégio de viver na dualidade, de harmonizar ideias desconformes, de sublimá-las na sabedoria da conciliação.
Pois é nessa conciliação de valores que se descobre, afinal, um sentido para a missão de viver. E se preservam, nos media, complementaridades que nos suprem lacunas e auspiciam a sua sobrevivência.
Dispensaria, seguramente, atoardas caluniosas disseminadas nas redes sociais, a coberto do anonimato ou enganosos pseudónimos.
Mas não se resignaria a viver uma era em que não sentisse esse peculiar odor de tinta gráfica; em que não escutasse as ondas hertzianas que diariamente me acompanham na ida para o trabalho, no regresso a casa; em que não buscasse, ansioso, o meu programa preferido no ecrã da Televisão.
E esta, de tão omnipresente, já nem reside apenas na tal "caixinha mágica": entra-nos em directo no smartphone, no iPad, no computador, preenche as nossas vidas, dá-nos a desgraça ao momento, a felicidade em slow motion.
Pois que, na Televisão, o "assim-assim" não existe: só existe o bom e o mau!
A nós compete escolher.
E, nessa escolha, cada um tem a Televisão que merece!
Ainda que a opção seja desligá-la...
Editorial de Mário Assis Ferreira
Esta é primeira edição bilingue.