A TRAIÇÃO
Et tu, Brute?
A traição é um estatuto. Do traidor e do traído.
Pois que não trai quem quer, só trai quem pode. E, para o poder, só um amigo tem esse estatuto.
Tal como o traído, na desprevenida confiança outorga, na incauta confissão de sentimentos, na imerecida partilha de frustrações e anseios.
Dessa recíproca vulnerabilidade, só possível entre amigos, pode nascer a traição.
E a luz, em que refulge a amizade, cede espaço à labareda que cega os olhos e encandeia o espírito.
Talvez por isso a traição nasça de meras circunstâncias, mas não seja alheia a convicções.
Felizmente, embora rara, rara é, também, a compensação do seu intento. Pois quando a traição compensa, muda de nome e chama-se "pragmatismo"...
Mas, bem ou mal sucedida, a traição deixa indeléveis marcas no traído, rasgado pela dor que fere esse precioso e diminuto reduto que alberga a nossa intimidade.
Era a nossa alma gémea e, subitamente, deixou de o ser; era a amizade que nos humaniza e, inopinadamente, nos trai.
Contra a traição não há vacinas, apenas escassos antídotos: a indiferença face ao traidor; o desprezo do esquecimento...
E - porque não? - a sublimação da descrença no reencontro das outras amizades que cicatrizem a ferida aberta.
Pois, afinal, a amizade é uma declinação do amor e é no amor que habita a solidariedade de outros fieis amigos.
Até porque a dor da traição, da "punhalada nas costas", é, no traidor, a implícita confissão de que o traído sempre esteve - e continuará - à sua frente. Como se, nesse gesto, se revelasse o insólito paradoxo do fraco reconhecer a supremacia do forte.
Perguntava Vergílio Ferreira: "Perante quem é que somos homens?"
Pergunta simples. Mas experimente fazê-la. Experimente pensá-la.
Nessa resposta, encerra-se a história da humanidade.
De Caim a Abel, de Brutus a Júlio César, de Dalila a Sansão, de Judas a Jesus Cristo.
É, afinal, a história do Homem, na encruzilhada das suas forças e fraquezas; a história de um Mundo que se estreitou em vizinhanças, sem se ampliar em irmandade.
E, nessa vizinhança entre fraquezas, habita outra, a deslealdade, condómina próxima da traição, mas com ela inconfundível.
Pois, essa, a deslealdade, não tem estatuto da traição: está ao alcance de todos.
É anónima, manhosa e não raro encapotada em enleios laudatórios.
De tão vulgar, faz parte do nosso quotidiano, de tão hipócrita, tende a sobreviver a todas as intempéries, qual rolha de cortiça, sempre à superfície, malgrado as águas revoltas.
Não dói, apenas incomoda e, se detectada, resulta inócua.
Traição e deslealdade são, enfim, espécies distintas nessa flora das fraquezas humanas, nesse silvedo das lacunas de carácter.
De comum têm a inveja, qual adubo em que germinam e as faz nutrir...
Inveja que, na deslealdade, é a admiração sem esperança!
Inveja que, na traição, é a cobiça travestida em esperança!
Sic transit invídia mundi...*
Editorial de Mário Assis Ferreira
Editorial de Mário Assis Ferreira