Natureza
Tropical
Tropical
Há palavras que se autodefinem em conceitos; e há conceitos avessos à definição em palavras.
Esse, o caso de Tropical , enquanto conceito.
Pois que, a sua mera evocação logo suscita controversas deambulações entre a realidade é a imaginação, entre a verdade e o preconceito, entre a História e a contemporaneidade.
Menosprezado fica, em regra, a razão da sua remota origem: a palavra "trópicos" data de cerca de 200 anos A. C., quando os astrónomos descobriram que o fenómeno dos solstícios no Hemisfério Sul acontecia quando o Sol estava posicionado, no limite da latitude da perpendicularidade dos seus raios, sobre a constelação de Capricórnio, do mesmo passo que, no Hemisfério Norte, ele se posicionava na constelação Câncer.
E assim se viriam a baptizar como Trópicos de Câncer e de Capricórnio essas duas linhas imaginárias, demarcadas à mesma distância da linha do Equador, para a caracterização de tal fenómeno astronómico.
Essa a realidade científica que diferencia, no globo terrestre, a Zona Tropical, das zonas temperadas e glaciais.
Uma realidade cuja descoberta em muito se deve à intrépida saga marítima de um pequeno país, de seu nome Portugal.
Eram os idos do séc. XV e o mundo estava compartimentado em múltiplas civilizações, fechadas sobre si próprias e herméticas a contactos com o exterior.
Com a conquista de Ceuta, em 1415, e a passagem do Cabo Bojador, em 1434, Portugal viria a assumir o pioneirismo da Expansão europeia, precursora da hoje apelidada Globalização e génese dessa epopeia dos Descobrimentos que nos levaria a desvendar dois terços do nosso planeta.
E o mundo não voltaria a ser igual desde que as primeiras caravelas sulcaram os mares do Hemisfério Sul e derrubaram persistentes mitos.
Certo é que outras civilizações já haviam galgado os seus limites originais e alargado a sua influência , alcançando, até, configurações intercontinentais.
Tal havia ocorrido, ainda na Antiguidade, com o império de Alexandre, com o dos Romanos e, subsequentemente, com o califado e o império mongol, sendo historicamente documentado que, já no início do séc. XV, os juncos da dinastia Ming haviam chegado às costas da actual Tanzânia.
Todavia, nenhuma destas incursões havia persistido ou ultrapassado a transitoriedade de meras aventuras fugazes.
Só os Descobrimentos portugueses foram consequentes como via de expansão, materializando o sonho, reformulando a noção de distância, antecipando a História.
Chegámos para ficar: o Atlântico, que fora uma barreira até ao séc. XV, transformou-se no grande eixo das comunicações internacionais. E homens, amimais, plantas, costumes, ideias passaram a cruzar o mundo em todas as direcções.
Hábitos localizamos em áreas restritas do Globo foram-se generalizando, lenta mas irreversivelmente, tal como ocorreu, a título de mero exemplo, com o consumo do açúcar, da pimenta , da canela, do gengibre, do cravo, do tabaco, do café, do chocolate, do chá, do algodão, das porcelanas e, até, do uso das armas de fogo.
Não resistimos, é certo, à tentação do esclavagismo, tenebrosa prática à época vigente num mundo alheio aos valores da dignidade humana é generalizada aos demais países europeus que se nos seguiram nesse surto de expansão colonialista.
Mas em redenção tardia, fomos pioneiros na abolição da escratura e o primeiro Estado a consagrar constitucionalmente a proibição da pena de morte.
E, se do Humanismo cultivámos a mestiçagem e pactuámos com o indigenismo, da Natureza aprendemos a conhecer - e divulgar - o exotismo dos seus caprichos.
Algo que, nos seus livros "Casa-Grande & Senzala (1933) e "o Mundo que o Português Criou" (1940), Gilberto Freyre antecipava como fundamento teórico do "luso-tropicalismo" e que, expurgado de pendor ideológico vigente à época, não deixava de caracterizar a tipicidade miscigenante do colonialismo português.
Trópicos e Natureza estão, pois, indissociavelmente ligamos à Gesta portuguesa enquanto realidade é mito, enquanto factualidade e imaginação.
Pelo que a nós cabe, em pleno séc. XXI, a remota paternidade de que se nutre a idílica imaginação contemporânea sobre a palavra Tropical e o conceito de Tropicalismo.
Praias desertas, circundadas de palmeiras e coqueiros; vegetação exuberante e animais exóticos; sensualidade, calor e águas transparentes entre o azul profundo e o verde esmeralda...
Essa, a visão paradisíaca de que se alimentam o turismo e o imaginário que nos habita em ansiosa apetência estival.
Essa, também, a visão cartográfica em que se albergam sectários preconceitos de subdesenvolvimento, desigualdades sociais, insegurança, condenáveis facilitismos, estigmas terceiro-mundistas.
Como se o mundo não fora redondo e em cada subúrbio de uma cidade europeia não tropeçássemos nas mesmas cicatrizes que disfarçam, mas não escondem, as chagas da desigualdade...
Chagas que bem conheço, independentemente da latitude: vivi oito anos no Brasil e, se a felicidade existe, esse foi, seguramente, um dos períodos mais felizes da minha vida.
Pelos amigos que criei e mantenho; pelas vivências pessoais que experienciei; pelo apelo à exuberância da Natureza Tropical; pelo muito que profissionalmente aprendi e que me serviria de guião ao longo da minha carreira empresarial.
Deixemos, pois, em quietude o imaginário Tropical e embalemos o espírito no doce remanso dessa pródiga Natureza, qual devaneio de um sonho que, afinal, nos é acessível.
Até que o sonho faz parte da vida e a vida é a mais preciosa dádiva que o destino nos concedeu.
Por isso, não foi acaso que Tropical, enquanto tema desta Egoísta, coincida com o início da estação estival...
Que este seja um Verão de evocação Tropical, de abraço à Natureza!
Pois que Tropical e Natureza coabitam em sinonímia.
E a Natureza nada faz em vão.
Mesmo quando ela nos fala e a Humanidade não a ouve.
Mesmo quando pensamos dominá-la sem que aprendamos, antes, nós mesmos, a dominar-nos.
Pena é que a Humanidade persista nessa arrogância que é filha da ignorância...
Pois a Natureza. a Tropicalidade, pode ensinar-nos mais sobre nós próprios do que todos os livros. Como se fora um compêndio de preciosos conteúdos em todas as suas páginas...
Por isso, de tão sábia, a Natureza nos resista; por isso, de tão paciente, a Natureza nos tolere.
Ainda que a insultemos e ela nos responda em oferenda de flores!
Saibamos, ao menos, agradecer-lhe!...
Editorial de Mário Assis Ferreira
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