terça-feira, 9 de junho de 2020

"EGOÍSTA - 20" - Março 2020



VALEU 
PENA
?


Um dia, algo distante, tive a incauta tentação de editar um "Jornal de Boas Notícias".
Arrojada façanha essa, logo gorada por uma fatídico estudo económico que me ditava o ónus de uma exígua circulação por carência de leirores interessados, bem mais ávidos de penumbras notíciosas...
Penumbras que nos reconduzem a um perímetro semântico circunscrito a desgraças, cataclísmos, corrupções, barbáries, qual condimento maléfico de uma existência temperadaem fel...
Será essa, talvez, a natureza humana...
Ou talvez a morbidez seja sinónimo de ingenuidade: algo diferente seria a nossa visão do mundo, se o mal não fosse exercitado sob a aparência do bem.
Ainda que essa benemerente aparência surja travestida em dever notícioso, alimentada em guetos de tribalização informativa, exacerbando opiniões, ignorando factos, sepultando a verdade no cemitério da ética.
Assim nos deixamos submergir em vórtices de desesperança, subjugados à crueza do que lemos, vivemos e ouvimos, inábeis no descortinar entre a veracidade dos factos e a mentira das "fake news".
Pois quanto maior for a calúnia e insidiosa a intriga, mais se nos aguça a memória em apetência de acreditar!
Eis, porém, qual "Grito de Ipiranga", que esta edição da Egoísta se dedica a cultivar uma outra visão de um mundo que, ao longo das duas últimas décadas, também nos trouxe boas notícias.
E porque nos chamamos "Egoísta", façamos jus à presunção desse subjectivismo, para celebrar, como boa notícia, os vinte anos de publicação de uma Revista que abriu, no panorama editorial português, um farol de luminosaexaltação literária, artística e cultural.
Qunato a esse globo que habitamos, não há que branquearas dramáticas vicissitudes vividas e sofridas ao londo destas duas décadas. Mas tal não invalida o ânimo de as sopesar na percepção de que notáveis progressos nos transportaram, em 2020, a uma vida bem melhor que a desfrutada no dealbar deste século.
Não me cabe no âmbito deste editorial, a exaustiva enunciação de relevantes conquistas da Humanidade nos últimos vinte anos: essa é missão que compete aos ilustres articulistas convidados a consubstanciar o auspicoso tema desta edição.
Mas sempre diria que no campo da investigação cientifica, designadamente na evolução da medicina, no exponencial crescimento da esperança de vida, na tecnologia digital, nos avanços da robotização, no desenvolvimento da inteligência artificial, no prodígio de multi+las revelações astronómicas, vivemos, uma nova era de dádivas à Humanidade.
A própria globalização, mal-grado os pretensos reflexos nocívos que é uso atribuir-lhe, teve um efeito decisivo na redução da fome e da pobreza nos países subdesenvolvidos, mitigando - moderadamente, embora - abissais diferenças que persistem em divorciar povos e países.
E sendo certo que ciclópicos desafios nos aguardam para salvar a salubridade deste planeta, igualmente se impõe reconhecer que, especialmente nesta última década, emergio uma generalizada conscientização quanto ao imperativo da prevenção ecológica, do combate às alterações climáticas, dos progressos na descarbonização, do control à denominada era do plástico", do apelo às preocupações ambientais, cujos progressos, embora escassos, mais enfatizam a dimensão das drásticas medidas a enfrentar  no árduo percurso que ainda falta trilhar.
São estes os sinais dos tempos: duas décadas de vitórias científicas, de significativos benefícios humanísticos, de um tardio - mas exegético - despertar para a preservação  do mundo em que vivemos...
No cômputo final, um saldo positivo!
Mas saberemos nós convolar esses créditos do presente em cenários de um futuro que nos isente de outros penosos débitos?
Saberemos nós, nessa urgência de progresso, nessa ânsia de viver, respeitar as razões da vida, cultivar os valores éticos que são matriz da Humanidade?
Sei que um conselho é sempre uma confissão: e, sem estatuto para dar conselhos, eu me confesso na ignorância de avaliar quais os limites alcançáveis pela ciência do futuro e quais os abismos com que nos deparamos face ao primado da dignidade humana.
Nesses abismos mergulham as minhas dúvidas...
Dúvidas que mais se agudizam no contemplar dos avanços da Digitalização, da Inteligência Artificial, da Robotização.
Dúvidas que me assaltam na materialidade das relações económicas, dos riscos da disrupção social; dúvidas que declinam em medos no afrontamento à espiritualidade de valores éticos, de ditames ontológicos, em risco de fragmentação. 
Pois não há espaço nem tempo para quimeras: não podemos alhear-nos de que, nas próximas décadas, se aproximam progressos tecnológicos, que, na ausência de uma cautelar prudência, poderiam confrontar-se com fundamentais princípios inerentes à nossa visão da Humanidade.
Sobretudo neste nosso mundo que tende a alargar-se em vizinhança e reduzir se em irmandade!
Vizinhança não raro incómoda se resvalar em devassa...
Seria esse possívelmente, o preço de um irreparável descuido na generalização do SG se, por tal via, se invadissem invioláveis redutos da privacidade humana.
Seria esse, também, o custo social de uma desmesuradarobotização, conduzindo ao desemprego em massa: sem uma prudente gradação, sem a contemplação de limites, aos seus excessos, sem o respeito à matriz do Estado Socaial, poderia abrir-se um inexorável ciclo que jamais se sipriria face ao nível socioeconómico de um gigantesco extracto da população faixa etária e inabilitação de aprendizagem se alastraria a todo o mundo, com especial incidência nos países subdesenvolvidos.
Seria esse, finalmente, o ónus do nosso descanso na urgência em preencher o vácuo normativo que obsta ao julgamento da responsabilização face ao erro da máquina, da culpa no irreparável dano de uma falível automação do artefacto.
Haverá culpa? Haverá responsabilização? E, porque tem de a haver, a quem deverá ser imputada? Ao criador da máquina?
Ao programador que lhe deu a capacidade de decidir? Ao proprietário que não soube medir os limites da sua utilização?
Mas, nesse turbilhão de receios, nesse remoinho de inquietações uma interrogação ressalta quanto ao futuro da Intiligência Artifícial: qual o destino do Homem na essencialidade dos valores éticos e morais que o definem enquanto Ser pensante, criador e criatura de sentimentos e emoções na intangibilidade da Alma?
Esse o desafio da Bioética e das Neurociências; um desafio de esperança que nos impõe a conteção da Inteligência Artificial nos estritos limites da lógica e do racional.
Exorcizemos, pois, os pesadelos dessa "Caixa de Pandora": porque se ultrapassada fosse essa barreira, se inventado fosse o transplante da Inteligência Emocional para um artefacto, nem sequer restariaao Homem um débil sentimento de propósito, nem sobraria para a Humanidademais que o ócio de vegetar em servil deificação de um algorítmo.
Mas sejamos justos: duas décadas volvidas, é tempo de saudar a conquista de um saldo amplamente positivo nesse controverso cômputo entre boas e más notícias!
Talvez porque a ambição tecnológica tenha aprendido a assumir os seus própios limites.
Ou talvez porque esses limites sejam o horizonte da dignidade humana: um horizonte que tanto mais recua quanto a ambição de progresso para ele avança!
Porém, a ambição, na ânsia de suprir anseios do presente, tende a esquecer tentações que o futuro lhe reserve.
Como se fora uma fome, voraz no seu apetite...
Pois que, no Homem, a ambição tanto pode voar, como rastejar.
Se voar, rumo a um responsável progresso da ciência, é a vitória da sabedoria, a exaltação do sonho, a sublimação da dádiva em prol da Humanidade.
Se rastejar, rumo à irresponsabilidade dos fins, é a frivolidade exibida, a derrota mascarada, a vaidade enaltecida.
Só que a vaidade não sobrevive ao Homem e morre precocemente.
Resta-lhe o epitáfio , qual derradeira vaidade!

Editorial de Mário Assis Ferreira 

A revista “Egoísta” está à venda no Clube IN do Casino Estoril e do Casino Lisboa. A “Egoísta” tem, ainda, uma campanha de assinaturas e está disponível em www.egoista.pt 

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