DEMOCRACIA MUTANTE
Nasceu na Grécia, no séc. VI A.C., teve Atenas como berço, como sede a "Ecclesia" - assembleia do povo - e como baptismo "Democracia", como natural decorrência da junção dos vocábulos "dêmos" - povo - "kratia" - poder.
Não foi longeva a sua história: a guerra do Peloponeso e a derrota ateniense face ao exército de Esparta viriam a assinar-lhe a certidão de óbito.
Volvidos séculos de trevas políticas partilhadas entre autocracias e oligarquias, surge, enfim, esse primeiro vestígio de Democracia a despontar na Grã Bretanha, qual "Fénix renascida", no brotar da "Magna Carta".
Vestígio ténue, embora promissor augúrio: em 1689, com a ascensão ao trono de Guilherme III e a publicação da "Bill of Rights" viria a consolidar-se a Democracia representativa, seguindo o apelidado "Modelo de Westminster", em configuração próxima às características que, hoje, lhe reconhecemos.
Configuração essa que, após a guerra da Independência Norte-Americana contra a Grã-Bretanha, viria a suscitar inevitáveis ressentimentos, sem prejuízo, porém, da herança democrática que inspirou os independentistas na assumpção dos ideais políticos do ex-colonizador.
Assim nasceu, em 1787, com a Convenção de Filadélfia, o primeiro esboço da Constituição Norte Americana que, após a sucessiva ratificação dos seus então treze Estados, viria a entrar em vigor em 1789, já com George Washington como seu primeiro presidente.
Essa, a origem da Constituição dos Estados Unidos da América, corporizada numa "Carta de Direitos", plasmada em 10 Emendas agregadas ao seu esboço original, inspirada na independência dos três Poderes de um Estado de Direito - o Legislativo, o Executivo e o Judicial.
E eis que. com a tomada da Bastilha, em coincidente sintonia cronológica, emerge, em 1789, a "Democracia Francesa", aclamada em brados de incontido vigor.
O Seu maior mérito foi a ultrapassagem da britânica insularidade democrática, abrindo as portas à sua progressiva expansão no continente europeu.
O Seu maior carisma foi o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", trilogia consecratória de um sistema político ao serviço do Povo!
Mas, pesem embora alguns laivos de utopia nessa fórmula tripartida, a verdade é que tal lema se foi apropriando de toda a Europa Ocidental.
Tão célere foi a sua progressão que, até 1938, segundo Yuval Harari, o mundo já só tinha três narrativas políticas para escolher: a democrática, a comunista e a fascista.
Vencido o fascismo, em 1945, só restava a escolha entre duas antagónicas alternativas.
Derrotado o comunismo com a queda, em 1991, da União Soviética e as reformas de Deng Xiaoping na China, tudo parecia indicar que, salvo algumas marginais aflorações totalitárias, só sobreviveria a opção pela Democracia.
Dramático equívoco esse: hoje, no desconcerto deste mundo em que vivemos, nada resta, de sustentável, para escolher!
Não que a Democracia, enquanto mero epíteto constitucional, tenha minguado...
Bem ao contrário, converteu-se em algo próximo a uma "Ideologia Mutante" e generalizou-se, como fórmula global, sob o cognome de Democracia: de directa a indireta, de laica a teocrática, de representativa a parlamentar, de capitalista a participativa, de liberal a popular!
Como se cada Constituição fora como um fato feito à medida do corpo que o veste, a disfarçar os defeitos de nascença do seu usuário...
Como se fora uma capa a esconder inconfessas vocações totalitárias, na vã tentativa de, formalmente, legitimar autocracias, oligarquias, plutocracias, sob o pretexto de pretensos nacionalismos ou expansionismos geopolíticos...
E, subitamente, o universo constitucional travestiu-se em democrata: de Cuba à Venezuela; do Irão ao Sudão; da Coreia do Norte à própria Rússia...
Do mesmo passo que, contraditoriamente, foi definhando nas genuínas Democracias o tradicional conceito de esquerda e de direita, substituído por falsas, embora aliciantes, propostas extremistas.
Desses extremos nasce a ofensiva de uma nova esquerda que reinventa, atomizados, os valores de 68 - "é proibido proibir" -, qual recriação de uma novel teoria do "homem, bom selvagem" e, paradoxalmente, preconiza o regresso a um vigilante colectivismo sectário, em nome de putativos conceitos de Liberdade.
Tal como se assiste ao renascer de uma nova direita, extremista, alienada de dimensão moral, impregnada de uma obsessão xenófoba, proteccionista, que tende a minar os pilares de uma direita convencional, já contaminada pelo "politicamente correto", pela hesitação ediológica, pelo alheamento aos valores metapolíticos que foram seu berço enquanto esteio de uma sociedade livre e justa.
Culpa, talvez, daquele auspicioso lema inspirador da Revolução Francesa que serviu de desajustado molde à hiper-globalização do conceito de Democracia...
Até porque "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" jamais coexistiram!
Pode apregoar-se a Igualdade no circunstancialismo do nascer - ou de votar -, mas a Natureza é mãe e madrasta: a matriz cromossomática, a geografia da natalidade, o acesso à educação, a maré das oportunidades, sempre nos fazem desiguais.
Sendo que, dessa inexorável desigualdade decorre a negação à almejada Fraternidade!
Por mais que essa Fraternidade se anuncie como práxis agregadora de um espírito comunitário, mais desponta a ambição em cada esquina da vida, mais se agudiza a inveja, qual admiração sem esperança...
Sobra-nos, enfim, a Liberdade, herdeira única e universal dessa frágil Trilogia de Valores chamada Democracia!
E, nessa sinonímia de Liberdade e Democracia, apenas nos resta a esperança do seu exercício responsável.
Esperança falível, pois que a Liberdade, enquanto solitária emanação da Democracia, só sobreviverá intacta se for um direito ao cumprimento do dever.
E só continuará perene se for um dever no respeito ao direito da Liberdade do próximo.
É nessa simbiose de Liberdade e Responsabilidade que assenta a contenção dos seus limites e reside, em Democracia, a autêntica Liberdade!
Mas esta, a que quotidianamente nos cerca, não é, seguramente, a Liberdade almejada, a nascida na razão, merecida na responsabilidade, tutelada na Justiça...
É outra, qual falácia que habita no cenário orwelliano de uma esóterica Liberdade: ela corrói-se nos escombros da ruptura dos valores, alimenta-se de intrigas, devassa-se em escutas espúrias, controla se em chips delatores, vigia se em Câmaras dissimuladas, dissolve-se em fake news nas redes sociais, ilude se em manipulações censórias, substitui-se à Justiça em piras incendiárias e imolações na praça pública.
Estranha Liberdade essa, a do transe em que vivemos, a que esconde as nossas culpas, a que apenas se vislumbra na esquina dos nossos medos...
Recordo, então, Clarice Lispector: "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome".
Talvez o tenha e a nós caiba o seu baptismo...
Talvez a sua pia baptismal seja o expiar dos nossos medos.
Medos que são o desconforto da culpa.
Culpa que não reside no sentimento mas, sim, no consentimento.
Consentimento que, no seu excesso, conduz ao arrependimento e, na assumpção da culpa, abre caminho à redenção.
Uma redenção que já não muda o passado, mas pode regenerar o futuro.
Numa regeneração que exige o reencontrar da Virtude.
Só que, como diria Agustina Bessa-Luís, "a Virtude é um ofício clandestino".
A nós cabe pôr a nu a clandestinidade desse ofício e vesti-lo de exigência!
Pois que a exigência da Virtude é o desejo vencido, o bom senso tornado energia, o meio-termo entre dois extremos.
Tal como o sortilégio de uma sabedoria que harmonize a paixão com a razão, a ambição com o dever.
Só assim triunfará o primado do Mérito!
Só assim se encontrará o tal nome que Clarice buscava, que não cabia em Liberdade, que se exauria em Democracia!
Basta, afinal, chamar-lhe Meritocracia!
Editorial de Mário Assis Ferreira
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