FRONTEIRAS
Os Muros do Medo
Algures, no século passado, comprei um velho globo terrestre que ainda hoje - por saudosismo ou descaso - permanece, algo difuso, entre as montanhas de livros que preenchem as prateleiras do meu escritório.
Duvidoso, enquanto peça decorativa; arqueológico, enquanto visão de um mundo repartido em raias territoriais.
Pois que um novo mapa de África renasceria, em finais do século XIX, na Conferência de Berlim, repartindo fronteiras de conveniência ao sabor dos interesses da potências coloniais, ciosas em definir as regras do que se presumia ser uma harmoniosa coexistência nas políticas de colonização.
Meio século volvido, eis que uma nova ordem mundial emergiria das cinzas da II Guerra Mundial, conferindo às potências vencedoras o poder e discricionariedade de encaixilhar o mundo - designadamente o Médio Oriente - em cubículos geoestratégicos.
E assim nasceram novos conceitos de fronteiras: as traçadas com régua e esquadro, não raro à revelia dos povos que a elas ficaram circunscritos - e de outros que lhes eram exógenos...
Mas há outras fronteiras: aquelas que, tal como Portugal, emergiram da identidade étnica, cultural, linguística e religiosa de povos e, nessa comunhão antropológica, marcaram as divisas de um Estado/País e, mais que isso, de uma Pátria/Nação.
Outras, aquelas que nasceram de vocações imperialistas, quando a História consagrava a medida do poder em função de territórios conquistados. Essas, dispersas por África e na própria Europa, foram nutridas em sangue, esculpidas com lanças e baionetas, quais trincheiras guindadas a fronteiras de Estados/Países que ainda aspiram a ser Pátria/Nação.
Outras há, finalmente, emergentes da descolonização, herdeiras de territórios pré-demarcados que, na diversidade étnica, linguística e religiosa de tribos e povos, ascenderam ao estatuto de Estados/Países mas não vislumbram, sequer, o conceito de Nação.
Eis, enfim, o retrato de um mundo novo, retalhado por fronteiras, dividido por equívocos, repartido por interesses, subjugado por ambições. Qual caldo de antagonismos que mais se acentuam face ao fenómeno da globalização.
Pois ela, a globalização, essa mítica panaceia que se afirmava como o romper de fronteiras, só viria, afinal, a acicatar barreiras, soerguendo proteccionismos, despertando nacionalismos, exacerbando ajustes de contas por pagar.
Como se tréguas e tratados fossem escassos intervalos lúcidos numa espécie de guerra contínua, atiçada por intuitos bélicos, interesses comerciais, manipulações de poder geoestratégico...
É este, afinal, o insólito mundo dos Trumps, dos Putins, dos Erdogans, dos Kim Jong-uns - e de uma China sempre atenta e expectante...
Essa, a nova ordem mundial transfigurada em desordem global!
Na sua margem, reside uma velha Europa que pesava 25% do PIB mundial e que, hoje, se contenta com uns escassos 17%:
desarticulada em políticas, frágil em lideranças, dispersa nos princípios, incoerente nos valores.
Tal como o eixo de uma roda: sempre fixo, num imobilismo indiferente à rotação dessa roda do mundo que em seu torno gira...
Com solavancos, é certo: abalada pelo saneamento de uma hecatombe financeira não totalmente debelada; insegura pela ameaça do terrorismo; apreensiva pelos surtos independentistas; impotente - e divisionista - face à avalanche de migrações desregradas.
Uma Europa, berço do Humanismo, arquétipo da democracia, pioneira da livre circulação entre fronteiras, que se queda confundida e não sabe como consertar os aros quebrados da sua própria roda, eufemisticamente designada como União Europeia.
Pois que União é pseudónimo, face à crise migratória!
Como se, subitamente, as suas fronteiras se houvessem radicalizado: ou são membranas porosas ao trânsito migratório, ou são muros inacessíveis aos valores da dignidade humana!
No seu seio, coexistem países como a Itália, a Hungria, a República Checa, a Polónia, onde já não habitam cidadãos do mundo: ou são nacionais autóctones, ou imigrantes proscritos que a todo o custo importa repelir. Quer sejam os que migram para fugir, quer os que migram para buscar...
Nessa deriva idiossincrática, são países esquecidos de que a migração não é um transbordamento de uma população que sobra, mas a fuga de uma população que sofre; indiferentes aos farrapos de sobrevivência dos que transpõem o Mediterrâneo e que se mudam de céu, não mudam de dignidade humana; alheios à destrinça entre refugiados políticos e aos que apenas fogem de condições sub-humanas em que a morte se avizinha!
Tudo isso é indiferente aos surtos populistas, às demagogias extremistas, aos pseudonacionalismos que proliferam na Europa!
São pregões arrebatadores sobre o risco da infiltração de terroristas, sobre a usurpação de empregos, sobre o perigo do multiculturalismo, sobre a perda da identidade étnica, sobre a miscigenação dos valores nacionais...
E, infelizmente, a xenofobia vai-se alastrando, conquistando votos e não deixará de ter consequências, muito próximas, no xadrez político europeu!
Como se uma Europa, apartada pelo Brexit da sua ilha maior, se fosse transmutando em arquipélago de ilhéus flutuantes que vagueiam ao sabor das ideologias reinantes...
Enquanto humanista convicto, não me revejo na rota dessa errática Europa.
Mas humanismo não é incompatível com visão pragmática.
E em nome de um humanismo pragmático, as portas da Europa podem - e devem - ser abertas à reinserção social dos que nela apenas buscam a sobrevivência, aos que nela ainda anseiam pelo reassumir de um estatuto de dignidade humana.
Abrir portas, porém, não é, simplesmente, escancará-las: impõr-se a adopção de triagens rigorosas, apoiadas em investigações credíveis das entidades de segurança, em colaboração articulada com os serviços de intelligentsia nacionais e internacionais. E, dessa filtragem, não cabe hesitar em prender ou recambiar para os países de origem pretensos refugiados que, encobertos na avalanche migratória, buscam desígnios terroristas ou intentos fundamentalistas!
Tal como será imperiosa uma intervenção internacional, drástica e musculada, visando exterminar os focos de traficantes de vidas que, nos países de origem, impunemente proliferam!
Até porque as migrações não são um surto transitório, mas um fluxo contínuo que se arrasta há anos e, se não decisivamente controlado, tenderá a expandir-se e perpetuar-se.
Sobrevivem neste planeta, 700 milhões de seres humanos em situação de pobreza extrema, quase o dobro da população de uma Europa que eles vislumbram como o El Dorado...
E a fome, a sua fome, é, porventura, a mais letal arma de destruição maçiva a ameaçar a Europa e a Humanidade!
Impõe-se, pois, enfrentar essa realidade!
Eu sei que este drama só poderia ser eficazmente combatido nos países de origem e não nas praias de destino.
Mas como promover a paz, o desenvolvimento socioeconómico, os valores da dignidade humana em países onde as guerras se sobrepõem em camadas, como se guerrilhas civis se convertessem em guerras regionais, logo ascendendo a conflitos geoestratégicos entre potências mundiais?
Sei, igualmente, que uma outra alternativa seria a de criar - a régua e esquadro, também - um "Estado de acolhimento" sob a égide da ONU, implantado no território de um desses "Estados-párias", entre alguns dos que vegetam no "Corno de África" e suas redondezas.
Esse cenário, porém, ainda se vislumbra como utópico, face a uma Europa carente de lideranças, alheia a princípios de coesão, órfã de relevância para influenciar os interesses geopolíticos de potências mundiais, frágil em recursos financeiros indispensáveis para investir, sustentadamente, no desenvolvimento socioeconómico desse hipotético "Estado de acolhimento".
Pelo que, no actual contexto, a solução para a avalanche migratória ainda não se reconduz aos Estados da sua origem, mas aos Países do seu destino.
E, para semelhante desafio, seria necessário que essa Europa, berço da Democracia, se redimisse em esforço de revisita aos luminosos pilares dos ideais de 1789, inspiradores do humanismo democrático: Liberdade, Igualdade, Fraternidade...
Pilares algo esquecidos nas teias isolacionista de tantos países de uma União Europeia em que a Democracia apenas serve de disfarce a regimes que não a praticam.
Como se a Europa fosse uma "Tela de Penélope": fazem uns o que os outros desmancham e desmancham outros o que esses fazem...
Como se tiranetes, disfarçados de líderes, fossem o espectro de lias que só exibem a face iluminada mas sempre ocultam o lado obscuro...
Como se a forma mais subtil de negar fosse o ardil de sempre dizer que sim...
Só que não existem meias-verdades; existe, apenas, a realidade!
E essa, doa a quem doer, é a subjugação da Europa a um difuso "império do medo", império que ela própria ajudou a fundar.
Não é por acaso que a industria bélica foi a única a não sofrer - e a prosperar - durante os anos negros da recente crise de recessão mundial...
Não é por acaso que, apenas no decurso de 2017, a industria mundial de armamento facturou 1,5 triliões de US Dollars em parceria com, pelo menos, dois países que se arvoram em esteios da União Europeia.
Como pode, agora, a Europa, renegar a sua realpolitik, carpir-se desse efeito de boomerang que dimana de tiranias sanguinárias sediadas em países por ela própria alimentados com a exportação de armamentos que fomentam guerras fratricidas, geradoras dos êxodos migratórios que, entretanto, lhe batem à porta?
Como pode, enfim, a Europa, expiar os seus próprios medos se ela sabe - ou deveria saber - que uma ínfima parcela dessa facturação em equipamentos bélicos bastaria para saciar a fome dos milhões de desvalidos seres humanos, travestidos em fantasmas, que agora a sobressaltam?
Talvez porque o medo seja útil para quem dele se aproveita e eficaz para os propósitos que os seus efeitos provocam...
Talvez porque escasseiem fronteiras com horizontes de esperança e sobrem muralhas para afugentar o medo...
Talvez porque o medo seja o alimento que nutre ambições políticas e engorde conluio de extremismo demagógico...
Ou, talvez, porque haja quem tenha medo que o medo acabe!
Editorial de Mário Assis Ferreira
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