Mulher Lisboa
Como te abordar, Lisboa?
Não nasci em ti, adoptaste-me sem eu te pertencer e pertences-me sem o saber.
Afinal, és a moldura em que encaixilhei o retrato da minha vida...
Reparti-me pelo mundo, na ambição de a ti fugir, na ânsia de a ti regressar.
E vivo-te tal como és: qual presépio alcandorado em sete colinas; qual cidade navegante derramada sobre o Tejo; qual devaneio cromático no azul desse teu céu fundido com o casario, em cintilações rosáceas.
Conheço-te, também, rua de enleios. quando a noite fica cega e as tuas sombras são, da cidade rosa, a escura face.
Essa, a outra Lisboa que eu amo e desamo.
Pois, para mim, ao invés do fado, Lisboa não amanhece: notívago de nascença, sinto que só despertas ao entardecer e é do crepúsculo da noite que, em ti, ouço Carlos do Carmo cantar-te o amanhecer.
E relembro altas madrugadas, em que me vi atravessar-te, de regresso a casa, o Tejo ao lado, a brincar com as luzes, o mar ali ao fundo, em brumas de mistério.
São brumas onde vislumbro essa lenda que é teu símbolo: a barca de São Vicente, os dois corvos a grasnar...
Já não há corvos em Lisboa, apenas esvoaçantes gaivotas.
Já são escassas as canoas, apenas fumegantes navios.
Pois que envelheceste para rejuvenescer: esse, Lisboa, o teu mistério, o teu sortilégio, o teu remorso, talvez...
Mas és a mesma na galeria de rostos e memórias que de ti guardo, nos anseios que me frustraste, nos sonhos que me concedeste.
Um deles, esse legado que te deixei - já lá vão dez anos - , o Casino Lisboa.
Simbólica contrapartida para tudo o que tu, Lisboa, generosamente me ofertaste.
Qual tesouro de vivências: a paixão e o desencanto, a entrega e a negação, a dádiva e a ingratidão, o capricho e a tolerância, o pecado e a expiação.
Como se foras Mulher...
Mulher amante, Mulher amada, Mulher Lisboa!
Editorial de Mário Assis Ferreira
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