Doce ser
Ditosa língua esta, a portuguesa, a que Pessoa chamou a sua Pátria.
Resiliente, também: enfrenta as intentonas de um espúrio Acordo Ortográfico e sobrevive, incólume, na semântica dos que pensam - e escrevem - pela própria cabeça.
Na pujança do seu léxico, eis que cada vocábulo se desdobra numa multiplicidade de sinónimos e, não raro, cada sinónimo se espraia em duplos sentidos.
Tal como a palavra Doce - na sua acepção gastronómica ou enquanto expressão imaterial.
Pois que Doce, guloseima, e Doce, postura humanística, não se confundem, embora se conciliem no prazer da sua fruição.
Até eu, impenitente adepto de suculentas sobremesas, sei que nelas há limites para a glicemia, mas ilimitadas são as dádivas de uma Doce serenidade que inspire a difícil arte de viver.
Porque é arte, mais que ciência, o dilema de existir: como se a vida fora um enigma camuflado em mil explicações; como se a aura da verdade pudera esconder-se em sombras de mentira...
Viver é mergulhar nesse paradoxal vórtice que nos abraça e divide. É sobrevoar densas nuvens de fracturantes compromissos entre anseios e abdicações, aspirações e tolerâncias, ambições e despojamentos.
Mas compromissos que se apaziguam na Doçura de um gesto, qual ensejo que nem carece de exibir-se para que a sua falta seja sentida.
Pois a doçura nem precisa de estar perto; basta que esteja por dentro.
Eis, então, que esse dom se desdobra em sinfonia de sentimentos, como se a multidão dos seus sinónimos se orquestrasse na pauta de uma escala musical em hino de louvor à vida.
Como um dom que emerge da vocação: nasce do berço e o seu primeiro assomo é o Doce sorriso de uma mãe...
Depois, é na vida a escola do seu percurso: educa-se nos verdes anos, nutre-se na maturidade.
Mas, em modo Doce, cada dia é uma vida, pese embora um dia a menos na rota para o seu desfecho...
Percurso ingrato, como diria Mia Couto: "a vida é um beijo doce em boca amarga".
Porém, esse é um repto que vale a pena enfrentar, pois é mais Doce o perdão do que a agrura do remorso!
E ser Doce não é prémio que espere recompensa: é dádiva de entrega, é gesto de estar, é acto de amor ao próximo, compromisso de humanismo...
De tão nobre, nem conhece o excesso: na Doçura, a demasia é, apenas, suficiência.
Ainda que, na sua dádiva, ultrapasse o que outros possam merecer...
Eis porque "Doce" é o tema desta edição de Natal.
E lamento que só o seja nesta época festiva.
Porque o Natal é mais, muito mais, do que uma festa de luzes, de risos de crianças, de prodigalidade em doces guloseimas, de euforia de presentes, de partilha de afectos, de reciprocidade de auspícios.
Também é - ou deveria ser - um hiato de agridoce reflexão.
Reflexão cerzida na saudade de cadeiras que, vazias, vão sobrando numa ceia natalícia...
Reflexão sobre nós próprios, no somatório de tantas falhas cometidas em cada dia de um ano, falhas que não se redimem nas furtivas promessas de uma noite de Natal...
Reflexão, enfim, sobre o que deixámos de estar e de dar de nós próprios em omissão ao Doce ensejo de um gesto amigo, de uma mão em ombro cansado, de um beijo em face carente, de um sorriso em desalento, de uma lágrima em olhar emudecido.
Talvez porque o Natal seja, afinal, a festa do coração...
E não o sentindo, não tendo o Natal no coração, jamais o encontraremos sob a árvore em que julgamos celebrá-lo!
Urge, pois, encontrar esse Natal, para que o desalento renasça em esperança, para que a esperança floresça em desígnio, para que o desígnio nos preencha a vida!
Como se, por milagre, um estado de espírito se convertesse em Espírito de Estar...
Como se, de tão Doce, esse Estar passasse a Ser!
Editorial de Mário Assis Ferreira
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