terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Egoísta Dezembro 2015


A Família e o Paradigma

Face à profundidade do tema, eis que, noite adentro, lá vou eu revisitar os recônditos dos sentimentos, apropriando-me da razão e do afecto - ou, por outras palavras, da síntese dicotómica entre inteligência e coração -, enquanto fundamentos do amor e sustentáculo de uma união familiar.
E recordo uma frase de Agostina Bessa Luís, esse nome maior da nossa Literatura: "Eu acho que não há inteligência sem coração. A inteligência é um dom, é nos concedida, mas o coração tem que a suportar humildemente, senão é perfeitamente votado às trevas".
Coração e inteligência, qual panaceia da luz que se contrapõe às trevas, eis o contemporâneo paradigma em que se funda a estabilidade da relação familiar.
Valores que são insitos a uma moderna concepção de Família.
Porém, a Família é, inquestionavelmente, a mais remota manifestação do instinto gregário do ser humano enquanto núcleo polarizador de valores interpessoais comuns. Permanente na sua existência, profundamente mutável nos contornos éticos dos seus fundamentos relacionais.
Nos estudos científicos de Morgan sobre os iroqueses, pode concluir-se que aos três estágios culturais da Pré-História correspondem, quase simetricamente, três modelos de Família: a família "Consanguínea", a "Panaluana" e a "Sindiásmica", cujo processo evolutivo viria a conduzir à progressiva implantação da Família "Monogâmica".
E, não cabendo neste espaço deambulações científicas sobre tais conceitos, sempre diria que, no que divergem, paradoxalmente se conciliam na promiscua generalização de práticas de relacionamento grupal que, hoje, tão veementemente nos repugnam.
Mas, por surpreendente que pareça, só na ascensão ao estágio civilizacional da Humanidade, a polis grega e, muito especialmente, o jus romano, viriam consagrar o conceito de Família enquanto expressão de um "novo" organismo social com regras hierárquicas e inter-relacionais vinculativamente definidas.
Regras essas, aliás, de precária permanência. Pois que, na Idade Média, no Renascimento, no advento, em finais do século XIX, das transformações socioeconómicas da Revolução Industrial, nos primórdios da emancipação feminina, no dealbar século XX e, já neste milénio, a liberalização, normativamente consagrada, das fertilizações in vitro, das barrigas de aluguer, das uniões homoafectivas, viriam a cristalizar profundas mutações éticas, sociológicas e jurídicas no conceito hodierno de Família.
Nessa eternidade sem tempo, nesse infindável percurso conceptual da Família, cruzaram-se clareiras de luz, exercitadas na coesa solidariedade de uma sobrevivência grupal, escavaram-se grutas de sombras na carnal promiscuidade de relações consanguíneas.
Mas, na vida, tudo é datado, até a ética e a moral: o opróbrio que, hoje, nos horroriza, foi a instintiva prática natural de uma primitiva procriação familiar.
E a mim, que tenho da Família uma visão neo-conservadora - melhor diria, semi-liberal - não me cabe, neste escrito, formular juízos de valor sobre praticas ancestrais.
Pelo que, regressando à moldura de uma contemporânea concepção de Família, interrogo-me se, neste mundo globalizado, a geografia dos afectos, centralizada, embora, na relação familiar, não poderia ser extensiva a todos os que nos são queridos e, afinal, à própria família da Humanidade.
Pois que, nos conturbados dias que vivemos, assistimos, algo impassíveis, à tragédia de milhões de refugiados que, do destino, só aspiram a uma precária sobrevivência.
E em refugiados nós próprios nos tornamos, exilados da solidariedade devida à Humanidade, circunscritos ao afago do consanguíneo afecto familiar.
Afectos esses, aliás, nem sempre fáceis de preservar.
Até porque na estabilidade afectiva de uma relação familiar,o egoísmo, a prepotência, a deslealdade, são tentações vulneráveis à sedução das trevas, ao repúdio da união.
Pois que a inteligência, quando vagueia desregrada e alheia ao coração, tende a corromper sentimentos, abalando os alicerces da coesão familiar.
E o que era uma sintonia de razão e afecto, de pele e emoção, vai-se dissolvendo em fantasmas de uma relação precária, sem horizontes de futuro.
Essa a dialéctica entre a luz e as trevas, dirimida na simbiose de afecto com a razão.
Porque o coração, mais tolerante que a inteligência, dispensa juramentos.
Porque no que a razão é cega, o coração fecha os olhos.
Porque no que a inteligência pede, o coração oferece.
E, por tudo isso, o coração pode sobreviver à verdade, mas a mentira pode sacrificar a razão.
Essa, a síntese comportamental em que se funda a Família, qual persistente aprendizagem rumo a uma felicidade possível.
Uma felicidade em que a vida seja a intemporalidade finita, em que o amor seja o presente, a paixão o antecedente, a prole o consequente.
Tal como uma casa que todos os dias se reconstroi com ferramentas de sorrisos.
Pois o sorriso é a janela iluminada de um rosto, confirmando que o coração está em casa!

Editorial de Mário Assis Ferreira

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